A luta pela saúde mental
- Maria João Gonçalves
- 18 de mar. de 2021
- 9 min de leitura
Hoje falamos sobre pedir ajuda. Num mundo como o de hoje em que todos os problemas são mensuráveis e comparáveis, pedir ajuda não é fácil. Dizem que somos uma sociedade individualista, onde cada um se importa mais com as suas coisas e com o seu umbigo do que com o outro ou os seus assuntos, mas ao mesmo tempo fazemos scroll numa rede social e mandamos bitaites sobre a vida alheia. No entanto, no momento de estender a mão ao outro e ser empático, são poucas as mãos que vemos ao nosso redor dispostas a segurar-nos.
Entristece-me perceber que ainda vivemos numa sociedade em que muitos consideram a saúde mental como a nova mala da Louis Vuitton, isto é, um luxo, não acessível a todos, mas também é como se vivêssemos bem sem ela. Ter depressão ainda não é visto como um problema de saúde, desafiante e que merece a nossa atenção, mas é antes visto como uma desculpa de gente que não quer trabalhar e esforçar-se. A ansiedade é entendida como a nova moda, como se fosse algo passageiro, é discutida como é discutido o regresso das calças com bainha à boca de sino. Até o suicídio é menosprezado e chamado de chamada de atenção... das pessoas fracas da cabeça. Ouvi isto esta semana, sobre alguém que se suicidou, "isso é coisa de gente de cabeça fraca". O meu estômago enrolou-se.
Face a este mundo em que vivemos, é compreensível que pedir ajuda seja um ato quase heroico e extremamente corajoso. Não é fácil pedir ajuda quando estamos rodeados destes preconceitos e desvalorizações. Se os que nos rodeiam insistem em dizer-nos que os nossos problemas são adiáveis, que acabarão por passar, são fases ou que comparado aos dos outros se reduzem a nada, como ficamos no momento de pedir ajuda? O silêncio passa a ser muitas vezes a opção. Claro que depois a ida ao psicólogo ou ao psiquiatra é também vista como um ato de fraqueza, que traz vergonha e que deve ser escondido dos outros. Que horror, o que seria se alguém soubesse que tomo conta de mim!
Perdoem-me a audácia e o tom sarcástico dos parágrafos anteriores, mas torna-se muito frustrante para nós (futuros) profissionais de saúde mental lidar com este tipo de mentalidade. Mentalidade esta que todos os dias tentamos desmistificar em mil e uma frentes diferentes. Existe cada vez mais informação a circular em tudo o que são plataformas, informação da boa, fácil de compreender, sintética e variada, até nas televisões. Esta pandemia aparentou trazer uma luz para a nossa área, para a importância que a mente tem na nossa vida e a urgência de cuidarmos dela como cuidamos do nosso corpo. Saúde mental é saúde, ponto. Não é a prima afastada da saúde, como se fosse menos importante.
Correndo o risco de dizer algo que muitos já ouviram, questiono: se tratamos da perna partida, do colesterol, dos diabetes, do cancro, da unha encravada, da dor de cabeça que não passa, a constipação que começou há duas horas, porque é que não tratamos da nossa mente? Porque é que o caminho até ao psicólogo é tão adiado? O conselho do amigo basta, o conselho do padre é suficiente, o conselho que li na internet ajudou, o diagnóstico que fiz num site aleatório já me disse que tenho ansiedade, etc. Os preconceitos são esmagadores e eu compreendo isso, mesmo. No entanto, é lamentável que tantas pessoas cheguem aos profissionais de saúde mental num estado mais agravado, que não seria necessário se a ajuda fosse procurada quando as coisas ainda não eram insuportáveis. Mas quero frisar que pedir ajuda, seja em que ponto for, é melhor do que não pedir ajuda, do que ficar no silêncio e a sofrer sozinho.
"De médico e de louco todos temos um pouco". Atrevo-me a dizer que agora até podemos atualizar isto e acrescentar psicólogo pelo meio, não sei bem se em substituição de alguma das outras palavras ou se um simples acrescento; "de médico, psicólogo e louco todos temos um pouco".
Ensinam-nos que devemos ser fortes, seja o que isso for, que devemos pensar positivo, "não chores que isso já passa", mas a verdade é que há alguns desafios com que nos deparamos e com os quais não sabemos lidar, pelo menos naquele momento. Temos as ferramentas para isso, mas não as sabemos usar ou ainda não as conseguimos encontrar. Vivemos desligados de nós, investimos pouco no nosso autoconhecimento e deixamos pouco tempo disponível para nos analisarmos, talvez por evitamento ou por falta de hábito. Contra mim falo, atenção! Adiamos a atenção que devemos a nós próprios, ignoramos o mal-estar que se vai acumulando e, por vezes, esta acumulação ganha um poder tão grande sobre nós que deixamos de conseguir funcionar como antes. Isto pode refletir-se de imensas formas.
Deixamos de fazer as coisas que nos dão gosto, porque já não nos fazem sentir nada de bom ou porque deixamos de ter energia e disponibilidade mental e/ou física para tal. Temos falta de motivação, mesmo perante os projetos e atividades que mais nos entusiasmam, custa-nos sair da cama ou iniciar tarefas. Torna-se verdadeiramente desafiante realizar até as tarefas mais básicas, como a nossa higiene diária ou tratar da nossa alimentação, tudo parece um grande empreendimento, como se estivéssemos a aprender as coisas novamente. A capacidade de concentração parece-nos fragmentada e as noites são agitadas, interrompidas talvez. Isolamo-nos gradualmente, de nós e dos outros. Desligamo-nos de nós. E não é normal sentires-te assim, por mais que te digam que sim.
Repito-me de texto para texto, mas é importante sublinhar, mais uma vez, que as coisas não são lineares, existem num contínuo e em interação. E como já falámos anteriormente, está tudo bem em não estarmos sempre bem. Todos sentimos emoções como a raiva, a tristeza, a frustração e não há nada de errado nisso. No entanto, a intensidade e a frequência com que as sentimos é que pode tornar as coisas mais ou menos preocupantes. É esperado e diria até saudável, sentirmo-nos tristes perante a morte de alguém que nos é querido, experienciarmos ansiedade perante uma apresentação oral de um trabalho importante, estarmos chateados quando alguém age mal connosco ou nos desilude. Tudo tem de ser analisado num contexto e tendo em consideração as idiossincrasias de cada indivíduo. Cada um de nós tem a sua história, assim como as suas próprias ferramentas, recursos e fontes de stress. Daí ser importante percebermo-nos como mundos complexos e não como entidades que facilmente se encaixam numa checklist de sintomas que depois nos "premeia" com um diagnóstico. As coisas não são assim lineares e tudo existe no meio de recursividade.
Tu melhor que ninguém deves conhecer-te. E se há algo que não está bem, pede ajuda. Mesmo que te digam que isso passa, que é normal, que há pessoas com problemas maiores, que tu és forte e consegues ultrapassar o que seja que for que te preocupa sozinho. Pedir ajuda não é ser fraco, é ser corajoso, é colocar em primeiro lugar a pessoa mais importante que existe na tua vida: tu. E mesmo que seja algo que conseguirias resolver sozinho, porque não pedir ajudar e partilhar esse peso que carregas com alguém que te ajudará a ficar ainda mais forte? Por vezes colocamos em último plano o nosso autocuidado, sobretudo ao nível mental, mas se tu não estiveres bem vais conseguir cuidar de alguém?
Outra coisa que não se fala o suficiente é da importância de os próprios psicólogos e outros profissionais de saúde mental terem acompanhamento. É verdade, os psicólogos também vão ao psicólogo. E aqui entram os comentários "se os psicólogos também precisam de ajuda como é que podem fazer o seu trabalho?". Os psicólogos vão ao psicólogo para conseguirem fazer o seu trabalho ainda melhor e também porque, minha gente, também são pessoas. Os médicos também não vão ao médico? Ou de repente ficam imunes a todos os males? Não partem ossos, não se constipam? E é importante que aqui não se aplique o ditado de que "em casa de ferreiro, espeto de pau", é crucial que os psicólogos cuidem de si.
Pedir ajuda pode ser particularmente desafiante para um psicólogo ou para um outro profissional de saúde mental. Leva muitas vezes a raciocínios erróneos de "eu não devia ser capaz de lidar melhor com isto?". Além de que, muitos de nós, já ouvimos em algum ponto do nosso percurso coisas como "estás ansiosa? então, mas tu que és/serás psicóloga não devias conseguir impedir isso?". É importante, crucial até, que os psicólogos sejam acompanhados, não só num registo de supervisão onde possam analisar e discutir casos mais desafiantes e trocar ideias, mas também num registo de falar das suas próprias vivências, que muitas vezes são tocadas pelas vivências dos nossos clientes. O psicólogo não é uma tábua rasa, tem os seus próprios valores, ideias, sentimentos, histórias, problemas, desafios. O nosso trabalho pede que mobilizemos a nossa humanidade, que sejamos capazes de empatizar com o outro e isso mexe também connosco.
Posto isto, partilho aqui que uma das melhores decisões que tomei foi ter pedido ajuda quando senti que precisava dela. Não foi fácil, sobretudo perceber que não estava a conseguir mobilizar os meus recursos para resolver os desafios com que me deparava. Coloquei de lado os próprios preconceitos e decidi cuidar de mim, até porque senti que o início da prática clínica me fez deparar com alguns desafios que desconhecia. Tem sido um processo crucial para me conhecer melhor.
Claro que cada processo será diferente, depende da pessoa e dos desafios com que se depara. Para mim tem sido transformador e tem sido crucial para aumentar o meu bem-estar, que se tem refletido nas mais diversas áreas da minha vida. No entanto, é um processo que dá trabalho, não é indolor. Iniciar um processo psicoterapêutico deu-me um espaço seguro, confidencial, ausente de julgamentos, onde me forço a parar e me dedico a mim, onde finalmente trabalho em mim. Tem sido um processo muito rico, ainda que doloroso em vários pontos, porque me tem ensinado a trabalhar e focar-me em mim, não só durante as sessões, mas principalmente fora delas. No meu dia a dia, nos momentos em que sou mais exigente comigo, quando me defronto com as emoções que tanto fui ensinada que não podia sentir, como a tristeza e raiva. Em alguns pontos tem sido um reaprender a viver e olhar para o mundo, mas sobretudo a olhar para mim.
Tem sido também um abrir de olhos para a minha prática profissional, ainda no seu início. Tem-me feito sentir um maior respeito pelos clientes que acompanho e pela confiança que depositam em nós. Tornou-me mais humilde ao olhar para aqueles que procuram ajuda, porque agora sei o quanto pode custar dar o passo de pedir ajudar, de vocalizar e admitir, sobretudo a nós mesmos, "não estou tão bem quanto achava" ou "não consigo sair disto sozinha". Além disso, o próprio ato de estar na consulta é um processo complexo e como já disse, por vezes, doloroso. É um abrir do livro da nossa vida, tocando no melhor e no pior, muitas vezes virando o foco para as áreas mais escuras da nossa vivência, áreas que já tinham pó e que evitávamos.
Sou naturalmente perfecionista, controladora e gosto de cuidar dos outros. E no meio de tudo isto o mais difícil foi admitir para mim que precisava de ajuda. Não recebi daqueles que me rodeiam nada menos que amor, cuidado e braços abertos, perante este pedido de ajuda. No entanto, na minha cabeça achei que iria ser vista como fraca, que iria tornar-me numa fonte de preocupação, que iriam pensar "há tanto tempo em psicologia e não consegues resolver isso sozinha?" E por isso compreendo a dificuldade de pedir ajuda. Mas por isso mesmo e por estar aqui hoje, ainda no meu processo, mas claramente melhor, incentivo-te, a ti que lês e podes precisar de ajuda, que a peças, que te coloques em primeiro lugar e que avances no cuidado de ti, independentemente do que os outros possam dizer de ti ou do que tu possas pensar de ti.
Pedir ajuda acaba por ser um ato fora da nossa zona de conforto. Estar nas consultas é estar fora da zona de conforto e é por isso que nos ajuda no nosso crescimento, ajuda-nos a fazer e a pensar diferente, é daqui que vem a mudança e essa mudança pode potenciar o nosso bem-estar. É um aprender a fazer as pazes com o que não podemos mudar ou não depende de nós, uma descoberta daquilo que realmente podemos fazer e controlar.
Não te sei dizer qual é o momento certo para pedir ajuda, mas talvez quando sentires que carregas um peso para o qual não tens força. Mais vale pedir ajuda "tarde", do que não pedir de todo, mas se sentes que precisas de ajuda agora, pede, não deixes arrastar, informa-te. Procura um profissional qualificado para te ajudar. Hoje existem imensos psicólogos com páginas nas redes sociais onde podes ler mais sobre a sua forma de atuação e podes perceber com que profissional te podes vir a identificar mais. Obviamente que não é algo infalível, mas há mais conhecimento e informação disponível do que antes. Há também psicólogos nos centros de saúde e nos hospitais, no privado existem também profissionais com bolsas sociais ou com acordos com outras entidades que podem ajudar a que as consultas tenham um valor mais reduzido. A saúde mental não é um luxo, é um pilar básico da nossa existência e, por isso, devia ser acessível a todos.
Não tenhas vergonha, nem medo de pedir ajuda.
Se precisares e eu te conseguir ajudar de alguma forma, não hesites. Não estás sozinh@!
Maria João.
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