A morte e a (des)ordem das coisas
- mariajoaocg98
- 23 de nov. de 2021
- 5 min de leitura

Já falei muitas vezes sobre livros neste espaço. De todas as pessoas que conheço não serei, com certeza, aquela que mais lê, ainda que seja um hábito que estou a tentar implementar com mais regularidade na minha vida. No entanto, tenho tido a sorte de me cruzar com livros que me marcaram.
Hoje gostava de vos falar do livro que tem o espaço mais especial na minha estante e que, de várias formas, marcou a minha vida. É um livro que já reli mais vezes do que as que consigo contar. Falo-vos do "Morreste-me" do maravilhoso José Luís Peixoto. Seja qual for a forma que use para descrever este livro será sempre imensamente redutora, por isso, deixo já aqui o desafio para que o leiam. Não é um livro fácil, não no que diz respeito à forma como está brilhantemente escrito, mas pela forma como mexe connosco, como remexe as nossas entranhas. É um livro que José Luís Peixoto escreveu sobre a morte do seu pai e para quem o lê, de repente, é sobre a perda de alguém também nosso.
Descobri este pequeno livro na biblioteca da escola secundária que frequentei. Lembro-me de o ter visto, mas não abri. Numa outra visita à biblioteca, numa qualquer manhã livre, voltei a cruzar-me com ele. Peguei-lhe e recordo que a senhora que trabalhava na biblioteca me questionou se queria mesmo ler aquele livro, sobretudo num dia solarengo daqueles. A verdade é que me sentei numa daquelas cadeiras azuis e só me levantei quando li a última palavra da última página.
Li este livro dois ou três anos depois do meu primeiro contacto próximo com a morte e com o luto. O meu avô faleceu em 2010 e foi, provavelmente, um dos momentos mais fraturantes da minha vida até hoje. Trouxe uma desordem à minha vida interna que eu, durante muitos anos, não consegui vocalizar nem organizar. Foi uma feliz coincidência ter lido o "morreste-me" porque acho que mudou muito a forma como eu me sentia. Foi a primeira vez que ouvi/li alguém a falar da morte como eu a sentia naquele momento. Talvez como ainda a sinto agora.
Li a minha dor, incompreensão e sentimento de vazio nas palavras de José Luís Peixoto. De alguma forma, encontrei conforto por não ser a única a sentir-me revoltada com o restante mundo por se atrever a avançar como se nada fosse, como se o mundo pudesse continuar a ser o mesmo sem o meu avô nele. O meu avô morreu e de repente estava na escola novamente, os meus colegas continuavam com a vida deles. E eu questionei-me muitas vezes como é que eu simplesmente continuaria a avançar. Seria suposto fingir até que eu própria acreditasse que o mundo continuava o mesmo? Que eu continuava a mesma? Que a minha família continuava a mesma? Então ali, naquela biblioteca, senti como que um abraço daquelas palavras, como que me dizendo que o mundo dos outros continua sim, mas que o meu perdeu algo importante e insubstituível e que não há mal em parar por uns instantes, deixar-me recordar e organizar o que ficou.
Recordar pode doer, pode doer muito durante muito tempo, pela saudade que traz e por muitos outros sentimentos que podem surgir, seja culpa, raiva, tristeza, revolta. Impedi-me de recordar durante muitos anos, mas naquele dia, sentada naquela biblioteca e imersa nas memórias da família Peixoto, permiti-me recordar também os Gonçalves, o meu Júlio Gonçalves. E, de repente, estava em casa dos meus avós, no almoço de domingo habitual, a comer feijoada e a ver o meu avô do outro lado da mesa a almoçar. Percebi que recordar dói e que terá sempre um gosto agridoce, ainda hoje tem, mas nas recordações também existe conforto, um quentinho insubstituível e que, infelizmente, não podemos conseguir em mais lado nenhum.
E sim, "a vida continua", "temos de seguir em frente" e o "tempo cura (quase) tudo". Tudo frases muito bonitas, q.b. verdadeiras, discutivelmente adequadas, mas que não sublinham suficientemente que a saudade vai permanecer, provavelmente com diferentes formas, intensidades e manifestações ao longo do tempo. E é importante arranjar um novo espaço, sobretudo emocional, para as pessoas que perdemos, porque não esquecemos simplesmente quem tanto foi e é para nós. Não acordamos milagrosamente um dia e a dor, a saudade e tudo o que está associado àquela pessoa e ao nosso luto desapareceram. É um processo, com altos e baixos, avanços e recuos, dias bons e dias mais complicados. E parte desse processo é arranjar uma nova forma para essas pessoas especiais continuarem a fazer parte de nós e do nosso quotidiano, sem que a dor e o luto nos impeçam de avançar.
Existem vários modelos compreensivos e explicativos para o processo de luto, cada autor contempla um determinado número de fases desse caminho tão duro para aqueles que, mais ou menos solitariamente, o percorrem. Porém, como qualquer outro modelo, estes servem apenas como guias, como formas de ajudar a compreender melhor a realidade. Não existem fórmulas mágicas, nem períodos pré-estabelecidos a partir dos quais se passa de uma fase para a outra, pelo menos não na prática. Como em tantas outras coisas na vida, cada um de nós leva o seu tempo a gerir a situação e não há nada de errado com isso. Aliás, é importante que o tempo e espaço de cada um sejam respeitados. Obviamente que existem lutos mais complicados que outros, mas há que ter em consideração que cada pessoa é diferente e reage aos acontecimentos de forma distinta.
Tentam convencer-nos que há uma fórmula universal, uma forma certa, de fazermos o luto. Chorar, ir ao funeral, usar roupa preta durante determinado tempo. Não há formas certas ou formas erradas de reagir à morte de alguém que nos é significativo e é importante que paremos com estas ideias do que é suposto fazer perante a morte. Não chorar não significa que se goste menos ou que doa menos, chorar não significa o inverso. Ir ou não ao funeral não é sinal de mais ou menos respeito.
Em nada ajuda fingirmos que a morte não existe ou evitarmos a todo o custo falarmos dela, até porque se torna em algo contraproducente. A morte é uma das poucas certezas que existem, é o final de um ciclo, do ciclo da vida e, por isso, mais tarde ou mais cedo, vai fazer parte da realidade de cada um de nós por mais assustador que isto possa soar.
Há algumas coisas que são paradoxais no processo de luto. Recordar dói, mas também não nos dizem, ou pelo menos não me disseram a mim, que depois de ultrapassarmos o medo de lembrar, podemos começar a sentir medo de esquecer. Esquecer a voz da pessoa que partiu, os cheiros que lhe estão associados, até as feições da sua cara ou as datas mais importantes. No entanto, é importante que nos lembremos que isso não significa, em momento algum, que nos importamos menos com a pessoa que partiu, é apenas sinal que a nossa realidade está novamente a ganhar alguma "normalidade" e a recuperar algum do sentido que a perda dessa pessoa levou. Não tem de existir um sentimento de culpa associado a isto, ao facto da "vida seguir o seu curso" e de já não doer tanto, ou pelo menos de a dor ser balançada com memórias mais felizes. Podemos lembrar-nos dos que partiram sem ter de doer e é isso que desejo a todos aqueles que perderam alguém.
Hoje sou capaz de recordar os momentos que passaram com aqueles que partiram da minha vida com uma mistura de saudade e tristeza por já não estarem cá comigo, mas também com felicidade e gratidão por todos os momentos bonitos que tive a sorte de partilhar com eles.
Este é para ti, avô.
“E este lugar que era mundo, agora, vazio oco quer ser mundo ainda. E, realmente, tudo se mantém suspenso. Tudo quer e tenta ser igual. Todos parecem acreditar. Sem ti, as pessoas ainda vão para onde iam, ainda seguem as mesmas linhas invisíveis. Mas eu sei, pai. Perderam-se as leis contigo. Perdeu-se a ordem que trazias. Pai”
José Luís Peixoto
Comments