A viagem pelo hábito
- Maria João Gonçalves
- 3 de abr. de 2021
- 5 min de leitura
Implementar uma mudança na nossa vida, cultivar um novo hábito ou tentar perder um antigo que não nos acrescenta mais, pode ser muito desafiante. É um processo que pode ser mais ou menos longo, mais ou menos complicado e dependerá de cada contexto e de cada pessoa. No entanto, temos a perigosa tendência de ver este processo como linear, como uma autoestrada entre o passado e o futuro ideal que queremos atingir.
Em alguns casos pode realmente ser assim, fácil, sem grandes complicações ou obstáculos, uma estrada bem alcatroada, bastante plana, sem altos nem baixos. Novos hábitos que facilmente se entranham em nós e passam a fazer parte da nossa rotina. Velhos hábitos que nos pesavam são indolormente descartados, como um casaco que deixamos de usar porque já não nos serve. Até podemos dar por nós a questionar "por que razão não fiz isto mais cedo?"
Porém, noutras situações até à mudança ou ao objetivo que queremos atingir pode ser um longo caminho, com curvas sinuosas, altos muito altos e baixos muito baixos, subidas desafiantes que nos fazem abrandar. Em alguns momentos podemos até ter um pneu furado ou ter de encostar para descansar porque os quilómetros começam a pesar. A mudança é exigente, há hábitos que sentimos que são tão nossos como os nossos braços ou qualquer um dos nossos órgãos vitais, fazem parte de nós. Somos criaturas de hábito, já conversámos sobre isso, sobre o quanto gostamos da previsibilidade. De alguma forma, perder ou ganhar um hábito é aprendermos a ser novamente, de forma diferente, não necessariamente melhor ou pior. Depende, como sempre.
Como em qualquer viagem, podemos enganar-nos no caminho e ter de procurar de volta a nossa rota inicial. Podemos até dar por nós no sentido oposto, quase inconscientemente a voltar ao lugar inicial. Quando tentamos adquirir um hábito como fazer mais exercício físico, ler mais ou qualquer outra mudança, ou perder um hábito como deixar de fumar ou qualquer outro vício que possamos ter adquirido, é normal que existam "recaídas", dias ou momentos em que voltamos a agir como no passado, em que, aos nossos olhos, falhamos. Temos uma tendência para sermos excessivamente duros e exigentes connosco próprios. A exigência é importante, não me interpretem mal, mas como tudo, em exagero deixa de ser benéfica. É importante que sejamos tolerantes connosco, que respeitemos os nossos ritmos, capacidades e dificuldades, todos as temos. Implementar uma mudança leva tempo e deve existir ao longo do caminho espaço para errar, para parar quando o cansaço aperta ou quando nos foge da memória o porquê de termos começado. Devemos respeitar que haverá troços mais fáceis de atravessar e ultrapassar, quando damos conta já estão atrás de nós. Contudo, existem outros mais íngremes ou esburacados em que teremos de ir mais devagar, com mais cautela.
No fim do dia, o que realmente importa é continuarmos a andar no caminho que nos faz mais felizes e nos traz mais bem-estar. Ou continuar a explorar à nossa volta para encontrarmos esse ou esses caminhos, porque a verdade é que podem ser vários. O que conta é mantermos o foco no que motiva as nossas mudanças e procurarmos, sobretudo em nós, as razões para continuarmos, qual é o nosso combustível. As verdadeiras mudanças e hábitos que perdemos ou implementamos são aqueles que fazemos por e para nós. Mudar custa, por mais que digam que não, há mudanças que doem, que nos dão um grande pontapé fora da zona de conforto e nos despem de certezas, que exigem de nós esforços hercúleos, quer seja física ou mentalmente.
Importa sermos realistas com os nossos objetivos também, compreendo que o que muitas vezes desejamos é dar mil passos a cada dia, mas nem sempre é possível e dez passos serão sempre melhores que nenhum. E mesmo que num dia se pare ou até se ande para trás, amanhã será um novo dia, uma nova oportunidade e mais um dia de viagem. Um dia menos bom ou que não superou as nossas expetativas não é motivo para descartar todo o caminho que se fez até ali, a menos que esse caminho nos esteja a trazer mais infelicidade do que contentamento e alegria. Se estás há muitos dias ou há muito tempo sem conseguir atingir os objetivos que traçaste, antes de colocares a culpa em ti e nas tuas aparentes incapacidades, analisa primeiro se as tuas expetativas não serão demasiado elevadas para o que é humanamente realizável por ti, tendo em conta as tuas capacidades, recursos e contexto. Analisa se estás num processo que te faz feliz, pelo qual queres passar e percebe se o que estás a fazer é por e para ti ou meramente para satisfazer os outros e o que eles traçaram para ti.
Também é possível que cheguemos à conclusão, ao longo do percurso, que há outros caminhos alternativos, que o caminho em que viajamos não nos serve mais ou existem melhores opções, rotas que gostávamos de explorar. Não há nada de errado nisto. Em mudar de caminho ou em fazer algumas paragens e enveredar por desvios no trajeto definido.
Sei que pode ser assustador, pegar no carro ou noutro qualquer meio de transporte e viajarmos à procura de uma nova versão de nós, mais feliz, mais saudável, mais em paz. Sei também que durante a viagem podemos sentir muitas saudades daquilo que fica para trás, mas devemos também ser capazes de fazer a seleção e colocar na bagageira aquilo que queremos que continue connosco. As saudades às vezes apertam, das pessoas que escolhemos deixar para trás, dos locais que se tornaram demasiado apertados para que conseguíssemos crescer e voar, das práticas e hábitos que eram mais tóxicos do que outra coisa. Há muita coisa que fica para trás e quando a saudade ou a nostalgia apertam, desafio-te a questionares-te do que realmente sentes falta. Se é daquela pessoa, lugar, hábito ou o que seja que motivou a tua mudança, ou antes do conforto e segurança que estar estático te trazia. Se for a primeira, tenta pensar no que te fez querer entrar nesse carro inicialmente, o que fez com que aquela coisa ou pessoa não fosse escolhida para continuar a desbravar caminho contigo. Existirão motivos suficientes para voltar? Só tu poderás saber. Se for a segunda e última possibilidade, a segurança e o conforto acabarão por voltar, no novo que passa a ser conhecido, nas novas estradas que vais conhecendo e iluminando no teu mundo. A mudança, por mais imprevisível que seja, por mais amiga que seja do desconhecido, pode passar a ser-nos menos estranha, se nos dermos a oportunidade de confraternizar com ela mais vezes.
Boas viagens, que viajes sempre com a mala cheia de amor por ti e pela vida.
Maria João.
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