A vida é um cocktail
- Maria João Gonçalves
- 30 de mar. de 2021
- 4 min de leitura
Escrevo-vos menos de cinco minutos depois de ter lido as últimas palavras do livro "Debaixo de algum céu" do Nuno Camarneiro. Confesso que ainda há muita coisa na minha mente para processar desta bonita aventura pela qual este livro nos leva. São 197 páginas de uma narrativa familiar, crua e realista. Chega a soar tão banal e quotidiana que se torna verdadeiramente bonita e viciante.
Não pretendo trazer-vos spoilers. Nem sei bem como o poderia fazer, porque o impacto deste livro está nas pequenas coisas, nas passagens que nos soam à nossa vida, nas descrições tão familiares que se desenham automaticamente e sem dificuldade na nossa mente. De repente, estamos lá com todas estas personagens, talvez porque em parte, em alguma altura e de alguma forma, já lá estivemos mesmo. Nas alegrias, nas tristezas, no tédio, nas aventuras...
De forma altamente e cruelmente resumida, este livro leva-nos a conhecer a história e vida dos residentes de um prédio durante a última semana de um qualquer ano. Englobando assim a época natalícia e o ano novo. Acompanha a semana de uma grande diversidade de personagens, um padre, vários casais, uma senhora viúva, uma criança sonhadora, adolescentes à descoberta, adultos e idosos, apaixonados e destroçados.
É disto que vos quero falar hoje, deste livro, porque cheguei ao final com milhares emoções a fervilhar em mim em simultâneo: alegria, tristeza, dor, medo... No entanto, minutos depois resta-me apenas paz.
Este livro conduziu-me a várias reflexões, por ser composto por personagens tão diferentes, em tantos aspetos, com desafios tão particulares e seus. Seus e nossos. Fez-me recordar que o amor não tem idade e, por isso, podes redescobri-lo e esbarrar com ele em qualquer altura da vida. Não existe tal coisa como ser demasiado velh@ para se entregar ao amor e alguém que nos quer e faz bem. Certamente em idades mais avançadas o amor terá contornos diferentes daqueles que existem na adolescência ou na adultez emergente, mas não deixará, com certeza, de incluir todas as fases. A fase do enamoramento louco e da paixão que arde dentro de nós e nos chama para o outro a todo o instante. A fase da descoberta do outro e de nós no olhar do outro. As fases de maior estremecimento e incerteza. O amor é para todos e para todas as idades. E mesmo depois de perdermos um amor, aquele que achávamos ser o amor da nossa vida, podem existir outros, se nos permitirmos estar disponíveis para tal.
Foi particularmente interessante para mim refletir sobre a religião e sobre a possibilidade de aqueles que a representam, a pregam e que assumem o papel de a representarem, podem, em determinadas condições, colocá-la em causa. Existem, de facto, momentos que nos fazem questionar que forças externas existem e para aqueles que acreditam nelas existirão, provavelmente, momentos em que essas crenças são colocadas à prova.
É um livro que se entranha em nós, por vezes é como estarmos a olhar-nos ao espelho numa folha preenchida com palavras diversas, com um nome que não é o nosso, mas que soa a nós. As nossas relações precisam de ser regadas para que não esmoreçam, sejam elas quais forem. O foco aqui é colocado nas relações amorosas e na forma como o conformismo pode infiltrar-se nas bases da relação e fazê-la ruir lentamente, quase impercetível, como os grãos de areia que caem de uma ampulheta. As relações têm de ser regadas tal e qual as plantas, é importante dedicarmo-nos a elas para sabermos em que condições prosperam, qual a quantidade de sol que faz as flores abrir e o verde das folhas ganhar vida e identificar se existe alguma praga de insetos a adoecê-las. Perante o murchar da planta há quem a arranque pela raiz e saia, há quem escolha ficar e com criatividade e vontade cuidar do que resta. Não há escolhas certas.
Dei por mim a refletir sobre a forma como sabemos tão pouco sobre os outros. Estes vizinhos, uns mais próximos que outros, não faziam ideia das lutas que os outros travavam. Por vezes, nem aqueles que coabitavam o mesmo apartamento em frente ao mar saibam com o que o outro se debatia. A realidade é que vivemos tão à pressa e na nossa bolha, nos nossos pensamentos, dificuldades, sonhos e necessidades que os outros acabam por nos passar um bocado ao lado. E isto muitas vezes não é intencional, mas tal como Nuno Camarneiro me mostrou, há pequenos gestos que podem fazer toda a diferença, a saudação de manhã entre vizinhos do mesmo andar, segurar a porta quando alguém está a entrar no mesmo espaço, partilhar o chá com a vizinha da frente em plena tempestade. Não sabemos o que o outro está a travar nas quatro paredes da sua casa ou nas paredes da sua mente, mas podemos escolher contribuir positivamente ou, pelo menos, não contribuir negativamente. Mostrarmo-nos disponíveis quando realmente estamos, não sermos precipitados em interpretações e dar aos outros o benefício da dúvida que muitas vezes desejávamos que nos dessem.
São tempos difíceis e não sabemos o que se passa no prédio ou apartamento de cada um de nós.
Foi uma viagem bonita, nem sempre leve, mas que valeu a pena. Muito semelhante àquilo que é a vida. Com uma subtileza de mestre, aborda a redescoberta sem idade do amor, o poder da música, a magia da imaginação das crianças e o mundo frenético da adolescência. Mostra-nos como os temas que consideramos tão tabus em discussões, webinários e conferências entram na nossa vida sem grandes reservas: o aborto, a eutanásia e a falta de dignidade na morte, as relações extraconjugais e a religião.
Este livro traz-nos um pouco daquilo que é a vida, um cocktail de coisas muito boas, boas, medianas, más e terríveis. Uma verdadeira montanha russa, repleta de imprevisibilidade, tanto para o bom como para o mau, mas é sobretudo recheada de mudança. A mudança de trabalho, de casa, de estado civil, entre tantas outras. A vida é feita disso e é isso que nos impulsiona para a frente, mesmo as pequenas mudanças.
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