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O Casal em Terapia num Mundo Confinado

  • Maria João Gonçalves
  • 21 de fev. de 2021
  • 7 min de leitura

Na minha apresentação e deste nosso espaço, contei que estava a estagiar na área da terapia familiar e de casal. A realidade é que tenho observado e trabalhado muito mais frequentemente com casais do que com famílias. Esta pandemia trouxe muitos desafios a todos nós e tenho-me deparado, de perto, com as consequências que teve e está a ter nas relações conjugais.


Pensando bem no assunto, faz todo o sentido que os casais se estejam a ressentir tanto. Antes da pandemia, vivíamos num mundo de corridas, sempre de um lado para o outro, já a pensar na próxima coisa que vamos fazer, atolados em trabalhos, tarefas e compromissos. Comemos à pressa, dormimos à pressa, falamos à pressa, sentimos à pressa, falamos à pressa, amamos à pressa. Tudo numa constante correria. Um beijo de despedida trocado de manhã e um à chegada ou às vezes já só na cama, depois de um jantar improvisado. Vivemos no amanhã, sem capacidade para parar e ver o que hoje temos por perto, a acontecer bem diante dos nossos olhos. Eis que surgiu esta pandemia e puxou o travão nas nossas vidas.


Este travão veio acalmar o mar agitado em que constantemente vivíamos. De repente, com o baixar da maré e o acalmar das ondas, não só nos conseguimos ver uns aos outros, como fomos forçados a isso mesmo, por um vírus que nos fechou em casa, sem possibilidades de saída. Isto levou alguns casais a confrontarem-se com um facto que desconheciam ou que tinham esquecido: as relações dão trabalho. Requerem manutenção, reflexão, atenção. As rotinas em que muitas vezes a nossa vida entra, os automatismos pelos quais nos deixamos levar, não mudam isso. O confinamento tornou-se um derradeiro desafio. Alguns confrontaram-se com uma pessoa que já não conhecem realmente, de há tanto tempo que já não se olhavam com “olhos de ver”.


A verdade é que o casal é dos sistemas mais complexos com que se pode trabalhar, é muito imprevisível e junta duas pessoas que, à partida, não terão nenhum laço a uni-los além do compromisso que fizeram uma à outra, isto é, não têm um laço sanguíneo, inalterável, como entre pais e filhos. Há muitas formas de se ser casal, isso é certo e sabido. Seja ela qual for, o casal vem desafiar as leis da matemática, porque, para existir, a soma 1+1 tem de ser igual a 3, isto é, incluir dois seres diferentes, únicos e individuais (o eu e o tu), que conjuntamente constroem um terceiro elemento, o nós. Este último é um projeto que requer muito trabalho e empenho, quase que um trabalho criativo de colagens, daquilo que cada um dos elementos traz consigo e dos seus, dos pais, dos avós, dos filmes que vê, dos sonhos e planos que tem. A colagem será só uma e, por isso, terá de ser negociado o que entrará no quadro ou não. Aqui é tão importante saber aquilo que se quer, como aquilo que não se quer, o que queremos fazer diferente. Note-se que, geralmente, na construção desta primeira colagem nos encontramos no campo da idealização, do enamoramento, um pouco desligados do que é ou não possível de ser realizado ou que fará sentido, a longo prazo, para nós. Ao longo dos anos e do ciclo de vida familiar, o casal vai passando também por diferentes fases e desafios, momentos de maior união e outros de maior afastamento, na maioria dos casos em função do crescimento dos filhos. Importa não esquecermos que a parentalidade não substitui a conjugalidade, são domínios distintos, com necessidades e tarefas diferentes, que coexistem.


A pandemia veio fechar na mesma casa, casais de todas as idades, em todas as diferentes fases da vida, com ou sem filhos, ambos a trabalharem ou não, com situações económicas mais estáveis que outras. Uns sentiram mais desafios que outros. Estar fechado numa casa com outra pessoa, mesmo que seja com a pessoa que escolhemos como nossa companheira, é exigente. A esta exigência poderão ter-se juntado conflitos pré-existentes, dificuldades não resolvidas, segredos, entre outros, que agora têm tempo ou oportunidade de vir à superfície.


Alguns casais voltaram a encontrar-se, a si e à colagem inicial que construíram, e perceberam que desde então não lhe tinham tocado. Lá estava ela, imutada, já com algum pó, como se cada um dos elementos não tivesse evoluído desde aquele momento artístico. Esta travagem brusca e inesperada, trouxe a todos momentos de introspeção, de dúvida, de colocar todos os detalhes em perspetiva e até em causa. O medo e a insegurança surgiram e em algumas casas a crise instalou-se, em algumas veio silenciosamente e quando se aperceberam já lá estava. Noutras situações, estes dias fechados foram as gotas que fizeram o copo transbordar.


Creio que estes são alguns dos motivos que fizeram com que os casais procurassem, com mais frequência, a terapia de casal. Não acho que tenha sido a pandemia a causar todos os problemas. Considero antes que a pandemia veio colocar o foco naquilo que já não estava a funcionar tão bem, tendo permitido que existisse tempo/espaço/oportunidade para que o casal se apercebesse e talvez falasse sobre isso. Em alguns casos, talvez nunca tenha funcionado realmente bem e noutros o que funcionava deixou de funcionar e é preciso aprender a fazer diferente.


Não quero com isto, de todo, dar a entender que os casais estão condenados por causa da pandemia. Alguns poderão estar, mas outros não. Talvez aqueles que foram condenados pela pandemia e terminaram nos últimos meses, teriam terminado daqui a uns tempos. Ou não. Percebem a complexidade de um casal e das relações humanas? A crise não é, nem nunca será, uma condenação. A crise surge quando existe uma necessidade de mudança, de evolução. Funciona como uma moeda, tanto pode ser um momento fraturante, levar a problemas e até à rutura do sistema, mas pode ser uma oportunidade de mudança, de nos sentirmos melhor. Ou seja, se alguns casais terminaram, outros poderão ter aproveitado a pandemia para trabalharem na relação, para se confrontarem com as dificuldades que têm tido e fazerem diferente do que já não os estava a servir. A crise pode ter um efeito transformador, como uma rampa de lançamento para algo que nos trará mais satisfação e realização. Como um sinal de alerta de que algo precisa de ser ajustado para que passe a funcionar bem ou a funcionar ainda melhor.


À primeira vista, a procura de terapia, seja ela qual for, pode transmitir a ideia de uma quase condenação, como se fosse o último passo possível a dar. Vivemos numa sociedade em que, à terapia, estão associados muitos estigmas, mitos e perspetivas negativas.


"Eles devem estar mesmo mal para irem à terapia", "Terapia de casal? Se precisam de ir à terapia é porque aquilo não tem pernas para andar!". No caso da terapia de casal, especificamente, não se tratará antes de duas pessoas que têm a capacidade de reconhecer que poderiam estar e ser melhores e, por isso, procuram ajuda para que isso seja possível? Não será isso antes um ato de coragem, de vontade, até de amor, para lutar por algo que é importante? Onde a vontade de superar quaisquer que sejam os obstáculos e melhorar o relacionamento é maior do que a possível vergonha ou dificuldade de abrir as portas da relação a um ou dois, inicialmente, estranhos? Esta foi uma das grandes lições que este primeiro semestre de estágio me trouxe. Este reenquadramento do que pode ser a procura de terapia de casal.


Uma segunda grande lição e talvez a mais difícil de digerir foi que um caso de terapia de casal pode ser um sucesso, mas a relação pode terminar. Paradoxal? Talvez. Então, mas se o casal não ficou junto e, por isso, tecnicamente, deixou de existir, como poderá o processo ter sido bem sucedido? A verdade é que o objetivo da terapia de casal não é, obviamente, separar os elementos do casal, mas também não é assegurar que estes ficam juntos para sempre, tal e qual um conto de fadas. Tudo se foca na relação entre aqueles dois indivíduos, o objetivo principal é potenciar o bem-estar de ambos e, em alguns casos, este bem-estar e até a felicidade não passa por ficarem juntos. O processo de terapia de casal é um caminho de reflexão, sobre o passado, o presente e o futuro. Um processo de (re)descoberta e abertura, daquilo que se é, daquilo que se quer, daquilo que não se quer. O objetivo é ajudar aquelas pessoas a perceberem o que querem para si e para o nós que construíram, e isto pode ser podem ser muitas coisas e cabe-lhes a eles descobrir.


Uma terceira lição vem disto mesmo. O terapeuta não dá soluções, não tem fórmulas mágicas para resolver as coisas. Lamento se vos desiludo, mas a verdade é esta. Nenhum sistema coloca problemas que não consiga resolver. A terapia é um processo conjunto de descoberta das ferramentas e competências que os clientes já têm e desconhecem. Não há uma solução one size fits all. Por isso, o terapeuta não pode querer mais que os clientes, não pode querer mais que uma relação resulte do que aqueles que realmente a compõem. O seu trabalho não é garantir que ficam juntos, mas antes que fiquem bem, independentemente do que isso significar. E, por isso, sim, um casal pode integrar um processo de terapia de casal, com o desejo inicial de trabalhar a relação e ultrapassar as dificuldades, conseguir de facto ultrapassá-las, mas concluir que o caminho que lhes traz bem-estar não será conjunto.


Seja qual for o desfecho do caso, é um processo muito transformador. Permite que cada um dos elementos descubra coisas novas sobre si, sobre o outro e sobre o nós, e redescubra outras que já tinha esquecido. Pode permitir-lhes mergulhar no início da relação e percorrer as memórias de um passado que pode estar, mais ou menos, vívido. Para nós profissionais, é uma constante lição de humildade e gratidão pelo facto destas pessoas nos permitirem fazer esta viagem com eles, pela confiança que depositam em nós e pela abertura. É um verdadeiro trabalho de equipa e se os casais aprendem coisas sobre eles próprios, também os terapeutas levam lições consigo após cada sessão. A terapia não será nunca um processo unilateral.


Obrigada a todos aqueles que depositam confiança nos profissionais de saúde mental. Sem isso, o nosso trabalho não seria possível.


Maria João.

 
 
 

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