Porque não também é resposta.
- Maria João Gonçalves
- 6 de mar. de 2021
- 5 min de leitura
Não quero. Não posso. Não preciso. Não vou. Não me interessa. Não concordo. Não.
Esta palavra simples e tão pequena tem um grande poder e, ao mesmo tempo, uma conotação tão pesada associada. Sinto que, de alguma forma, somos formatados para não usar essa palavra tão regularmente quanto deveríamos. Em algumas situações, em vez de ser visto como uma forma de emancipação, de proteção dos nossos direitos, necessidades e vontades, um assegurar das nossas liberdades, é quase visto como uma desistência, falta de empenho ou interesse, talvez até ingratidão ou um sentido de "sou demasiado bom/boa para isto".
Uma recusa a um convite para uma festa e, de repente, somos o "cortes" do grupo. Um rejeitar de uma proposta para um novo projeto ou um novo trabalho e somos demasiado bons para fazer aquilo. Um discordar da opinião mais consensual e somos quem está sempre contra tudo, o "chico esperto". Existem demasiados exemplos possíveis para colocar aqui de situações em que o não ganha uma proporção e uma quantidade diversa de diferentes interpretações que não aquela pretendida. Algo que não creio que aconteça tão frequentemente com o sim, não acho que o sim seja tão questionado, interpretado e desconstruído como o não. Talvez seja socialmente melhor aceite, porque mostra disponibilidade, talvez iniciativa. De alguma forma, é como se o não tivesse vindo a ser associado a falta de vontade, por vezes até falta de educação, como se fosse rude rejeitar algo que nos propõem.
Todos temos uma tendência para interpretar as palavras dos outros e fazemo-lo sempre com base na nossa perspetiva, nos nossos valores, opiniões e nos factos que achamos que detemos. Aquilo que proponho é que exista uma maior flexibilidade ou um alargar do alcance das nossas interpretações do não, tendo sempre em consideração que cada situação é uma situação única. Lá está, haja equilíbrio, flexibilidade e uma tentativa de calçar os sapatos do outro.
Um "não tenho tempo" pode simplesmente significar isso e não estar, em nada, relacionado com falta de interesse ou vontade. Pode ser até um ato bastante consciente e responsável recusar um convite ou uma proposta, se não sentimos que temos disponibilidade, seja ela mental, temporal ou emocional, para investir em algo novo na nossa vida. Por mais vontade que exista, se não temos recursos disponíveis para dar o nosso melhor e nos entregarmos, para quê estabelecer um compromisso que à partida já sabemos que não conseguiremos corresponder? Se não teremos capacidade para dar a devida atenção àquele amigo que tanto gostamos naquele preciso momento, por que razão ficamos mais zangados com um "não" do que com alguém que está apenas fisicamente ao nosso lado, mas com a cabeça noutro lugar? Não ter tempo agora, não significa que mais tarde esse tempo não exista. Um não pode ser um ato de respeito, pelo nosso tempo e pelo dos outros.
Um não pode ser também um ato de autocuidado e de amor-próprio, de respeito por nós e pelas nossas necessidades. Se ir àquela festa te vai fazer sentir desconfortável, porque é que vais? Se aquele convite não te faz sentir bem, porquê considerar um sim que só satisfaz o outro? Eu sei... eu sei, que por vezes dizer que não pode ser doloroso, uma verdadeira luta connosco e com os valores que nos incutem desde cedo. Pode ser uma luta com o nosso passado de "sins" que nos roubaram aos poucos a nossa paz e energia, que nos anularam e tiraram de uma equação que, sendo nossa, teríamos de integrar. Não estou, de modo algum, a dizer que usemos o não como escudo para tudo e que recusemos tudo o que nos possa fazer sentir desconfortáveis. Afinal de contas fazer diferente, enfrentar o desconhecido e sair da nossa zona de conforto traz isso mesmo. No entanto, uma coisa é o desconforto que vem do crescimento, da aprendizagem e dos riscos que vamos correndo para atingir os nossos objetivos e sonhos, outra coisa é o desconforto que sentimos quando somos desrespeitados, quando a nossa saúde física e mental está na linha, quando a nossa felicidade e bem-estar é posto em causa. Quero apenas alertar que devemos perder o medo de usar o não, sobretudo naquelas situações em que ele simplesmente surge na nossa mente e o nosso corpo de alguma forma nos impede de o vocalizar. O não é tão importante como o sim. E se o não que cuida de nós ofende os outros, isso diz mais sobre eles do que sobre nós.
O não pode ser também libertador. O não e tudo aquilo que nos possa tirar das situações que não nos trazem mais felicidade, realização, bem-estar, paz ou o que seja. Não me interpretem mal, sei que as coisas não são lineares, nem muitas vezes fáceis e que não existem isoladas, sendo que um "não" pode não ser suficiente para nos tirar de algumas situações mais complicadas, como um trabalho que não nos traz felicidade, que nos tira saúde e que nos consome. O mesmo com relações que já não nos enriquecem, que já não nos fazem sentir que estamos no lugar certo. Há muitas coisas a considerar e, lá está, cada caso é um caso e tem os seus detalhes e complicações. Mas o não pode ser um começo, sobretudo aquele que dizemos a nós próprios "não quero isto para mim", "não aceito mais isto", "não fico mais aqui". Este não pode ser o começo de uma busca de recursos e estratégias que nos permitam, mesmo que seja algo que leve tempo, a sair das situações que são tóxicas para nós e que nos prendem de alcançarmos todo o nosso potencial.
Sinto que o não está muito associado à ideia de desistir. À desistência também é dada uma conotação muito negativa e a verdade é que, em algumas situações, desistir pode ser uma opção tão válida como continuar. Se continuar te traz dor, desespero e não vês um momento em que isso possa mudar, porquê continuar? Se continuas pelos outros e não por ti, se o teu bem-estar não pode coexistir com essa opção, para quê continuar? Desistir não faz de nós fracos e é uma opção válida. Alimenta-se tanto esta cultura de que nunca podemos desistir, que tanta gente passa a vida inteira em insistir em coisas, relações, carreiras e atividades, que não lhes trazem qualquer tipo de realização ou satisfação, com tantas coisas boas a passarem-lhes ao lado, só porque não podem desistir, "têm de acabar o que começaram", caso contrário serão fracos. Não existirá também coragem na desistência? Em perceber que aquele caminho não é para nós e que haverá outro ou outros melhores por aí? Pessoas que desistem do emprego que ocupam há anos para finalmente seguirem os seus sonhos. Pessoas que se descobrem porque finalmente desistiram de uma relação tóxica. Pessoas que encontraram a sua vocação depois de desistirem do curso que tanto lhes incutiram para fazer. Onde está a fraqueza aqui? Não será a vida demasiado curta para continuarmos a insistir em coisas que nos fazem querer desistir de nós todos os dias? Lá está, esta é a única coisa da qual não devemos desistir: de nós.
O não é poderoso, pode significar inúmeras coisas, mas algo que queria deixar bem claro, sobretudo à luz das notícias que circularam nas redes sociais nas últimas semanas, é que num contexto sexual um não não precisa de ser justificado. Um não significa apenas isso. Aliás, significa tudo isso, que não existe consentimento e aqui não há espaço para interpretações, para ler nas entrelinhas porque elas não existem. A linguagem pode ser subjetiva em muitos aspetos, mas não há subjetividade nesse não que se diz. E não se trata de uma resposta que tenha de ser acompanhada por uma justificação para ser válida. A validade do não consentimento não é discutível. O não pode ser, de facto, um ato de respeito, não só daquele que o exprime, mas também daquele que o aceita, sem necessidade de perguntar "porquê?".
Porque não também é resposta.
Maria João.
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