Um desconhecido tão familiar
- Maria João Gonçalves
- 24 de mar. de 2021
- 5 min de leitura
A pandemia fez-nos confinar e de alguma forma este confinamento e o espaço em que estamos fechados há tanto tempo tornou-se a nossa zona de conforto. Ainda que a maioria de nós esteja muito entusiasmada com o regressar à rotina e à "normalidade", este regresso pode ser realmente assustador, sendo que estamos afastados desse conceito de normal há bastante tempo. De alguma forma, a rotina à qual é esperado que voltemos já não é a mesma e talvez tenha pouco de rotineira, bem vistas as coisas. Aliás, será que o tal regresso à "normalidade", será de facto isso mesmo? Ou será antes uma redescoberta e um ajuste àquilo que passará a ser o novo normal?
Este regresso ou a ideia dele pode tornar-se algo assustador e um fator de ansiedade. Provavelmente será um desafio para todos nós, que tanto tempo passámos engaiolados, mas terá certamente contornos e dificuldades diferentes para cada um. Coisas que antes fazíamos sem pensarmos sobre elas, agora passaram a ser atos pensados e medidos, seja abrir uma porta, tocar numa campainha ou andar num elevador. Além destes, muitos outros atos que naturalmente realizávamos, deixam agora em nós um sentimento de dúvida e um alerta como um alarme de um carro que tem alguma dificuldade em ser desligado.
Na semana passada voltei a Coimbra e ao meu local de estágio para algumas tarefas que tinham de ser feitas presencialmente. Foi bom voltar à cidade que me acolhe há tantos anos e que é uma verdadeira casa para mim, no sentido da segurança e do conforto. Voltar a estar na minha casa, voltar à faculdade e voltar à rotina que criei há uns largos meses atrás e na qual fui encontrando, lentamente, paz e conforto, mesmo nos dias mais atribulados. No entanto, passei os dias com um sentimento estranho em mim, como se estivesse a estranhar a realidade em que estava. Como se tivesse saído da minha bolha confortável e segura e estivesse finalmente de volta ao mundo real. Porém, senti que estava a jogar ao jogo das diferenças, aqueles que vinham nas revistas e nos jornais, que fazem nascer alguma frustração em nós, porque tudo parece igual, mas existem diferenças subtis que fazem toda a diferença. Sabemos que algo mudou, que algo difere, como se algo estivesse fora do sítio, mas não conseguimos bem identificar o quê.
Além disso, senti-me estranha, como se os meus passos fossem dados com um barulho de fundo de incerteza e ansiedade. Desinfetar as mãos. As superfícies. Antes e depois de usar. Não mexer na cara. Desinfetar as mãos. Um ciclo repetido até à exaustão. Atos que fazia inatamente tornaram-se atos analisados ao ínfimo detalhe. Questionei-me se a rotina que tanto gostava algum dia me iria trazer de novo paz e segurança. Não cheguei a nenhuma conclusão.
Isto fez-me relembrar a reflexão que trouxe aqui a este nosso espaço recentemente sobre a zona de conforto. Este regresso à tão querida "normalidade" é um verdadeiro passo fora da nossa zona de conforto, num desconhecido que achamos tão familiar, porque as mudanças são pouco visíveis. Os sítios são os mesmos, as pessoas também, os percursos e tarefas mantém-se. Porém, de alguma forma tudo mudou. O abraço apertado que nos falta, o à vontade nos espaços que foram muito nossos encontra-se limitado, as tarefas do quotidiano agora demoram mais tempo ou têm algumas diferenças na sua execução. Estamos no domínio do familiar desconhecido. E torna-se realmente desafiante aprendermos a ser e fazer diferente num sítio onde sempre fomos e agimos da mesma maneira.
Por mais assustador que possa ser voltar a sair da nossa bolha, é importante que o façamos, sempre com todos os cuidados de saúde claro. O medo estará presente e o receio também, até porque em muitos sentidos isto é maior que nós, mais que sermos infetados, stressa-nos também a possibilidade de infetarmos os nossos, aqueles que nos são mais queridos e em alguns casos mais frágeis. Sentiremos ansiedade, iremos desinfetar as nossas mãos mais vezes que o necessário, mas é importante irmos, darmos passos, por mais pequenos que sejam, fora da bolha.
Vai levar tempo a sentirmos a "normalidade", porque ela já não existem pelo menos não da mesma forma, e certamente as coisas não irão voltar a ser como eram. Mesmo que a pandemia não tivesse existido, o mundo é dinâmico e o tempo traz mudanças, evoluções e diferenças, não tão drásticas como as que vivemos hoje, isso é claro. Não podemos voltar ao passado, ainda que compreenda que esse, agora em retrospetiva, fosse tão melhor do que o presente que vivemos. No entanto, tudo o que temos é o agora, o passado já lá vai e mesmo sem pandemia não foi, com certeza, perfeito. Tudo o que podemos fazer é neste momento e no futuro e prendermo-nos ao que antes era, ao que antes éramos irá contribuir para nos congelarmos e não nos movermos mais.
Sinto falta da minha rotina e acredito que também muitos de vós sentem, mas agora é tempo de criar uma nova, numa realidade nova, diferente. É altura de irmos caminhando no familiar desconhecido e aos poucos tornar esse lugar, por agora estranho, em parte da nossa zona de conforto. Vivemos numa constante comparação, daquilo que somos e temos face ao que os outros são ou têm, daquilo que fomos e agora somos, do passado e do presente. Avaliamos a qualidade e, sobretudo, a quantidade. Temos o diferente perante de nós e somos também aqueles com o pincel e o poder de torná-lo em algo terrível, suportável ou até bastante bom. Será diferente do passado, isso é certo, mas não quer dizer que esteja condenado.
Houve com certeza hábitos, hobbies e outras coisas que descobrimos neste período de confinamento, que se calhar não teríamos descoberto ou posto em prática de outra forma. São coisas positivas que podemos retirar destes momentos. Não me interpretem mal, a pandemia trouxe coisas terríveis e devastadoras, mudanças que se vão sentir durante muito tempo, nenhum de nós sairá desta situação da mesma forma que "entrou", mas não é por um evento ser mau, que não podemos retirar dele aspetos positivos. Uma coisa não invalida a outra. Por exemplo, o confinamento permitiu-me readquirir o hábito da leitura, a verdadeira leitura por prazer e lazer, longe das leituras profissionais e de obrigação. Foi uma rotina que ganhei, que me trouxe calma e tranquilidade nos dias mais complicados e que me fez viajar sem sair do lugar. Se todos analisarmos com cuidado, haverá alguma coisa positiva, maior ou menor, que é possível tirar desta situação. Repito, isto não quer dizer que aceitássemos passar por isto novamente se tivéssemos possibilidade de o evitar. As coisas existem num continuum. E se olharmos com cuidado, nada é apenas mau ou apenas bom, existem várias tonalidades pelo meio.
Seja qual for a mudança, existe sempre um período em que tudo parece mais ou menos estranho. Acho que é importante sermos também tolerante connosco e respeitarmos o facto de levarmos algum tempo para nos adaptarmos a esta nova versão da realidade, sendo que o nosso ritmo pode ser diferente do dos outros, ora mais rápido ou mais lento. A comparação é sempre tentadora, mas recriminarmo-nos por irmos demasiado devagar neste processo de adaptação ao desconhecidamente conhecido só nos tratará mais sofrimento. Mas certamente chegaremos a um momento em que voltaremos a fazer coisas inatamente, seja, por exemplo, colocar a máscara ou desinfetar as mãos. O hábito nasce da estranheza com a qual fazemos as pazes, do diferente que decidimos incluir na nossa rotina e zona de conforto. Aquilo que a um dia chamámos normalidade, nem sempre o foi para nós. Lembrem-se do primeiro dia de faculdade ou numa escola diferente. Isso não era algo normal, pois não? Houve um primeiro impacto. É preciso darmos tempo para que nos possamos adaptar, acreditando que temos em nós essa capacidade.
Que em breve este desconhecido tão familiar possa converter-se naquilo a que chamamos normalidade. Que as nossas rotinas possam voltar a sê-lo, cheias de previsibilidade, automatismos e poucas estranhezas, transmitindo-nos a segurança que precisamos e procuramos nela.
Maria João.
Comments