Viver a correr
- Maria João Gonçalves
- 4 de out. de 2021
- 4 min de leitura
Por vezes tenho a sensação de que andamos todos a correr, uma constante correria, como se andássemos a fugir de um cão enorme e assustador que nos persegue. A realidade é que esse cão, em algumas situações, não existe ou não tem a dimensão que achamos que tem. Muitas vezes são os outros que soltam esse cão atrás de nós, noutros momentos somos nós que lhe abrimos as portas e noutras ocasiões é uma mistura das duas possibilidades.
Corremos, cheios de pressa, para chegar a algum sítio, porque parece que existe sempre um sítio que necessita imensamente de nós. Mesmo que durante a maior parte do tempo não saibamos exatamente que lugar é esse. Estamos sempre atrasados para algo e o cão assustador anda atrás de nós, como que a obrigar-nos a manter um ritmo. Geralmente, um ritmo que nos ultrapassa, que nos impede de viver o dia de hoje na ânsia de preparar o amanhã ou até dias mais distantes, ainda abstratos e hipotéticos.
Vivemos num mundo a correr, que vive para ter as coisas prontas para ontem, onde “parar é morrer” e quem não tem resistência suficiente para se aguentar vai ser, muito provavelmente, abalroado e atacado pelo cão. Este cão pode ter muitos nomes, fracasso, medo, desespero, etc. Acho que cada um lhe dá um nome diferente e seja qual for o nome, não o torna menos assustador.
Vivemos com a ideia de que quem mais trabalha, no sentido quantitativo, é mais produtivo. Que fazer mais nos leva a receber mais. Isto pode ser verdade em alguns casos, mas porque é que não paramos o suficiente para refletir que fazer melhor nem sempre é fazer mais e que, provavelmente, fazer melhor nos leva sim a receber mais? Produtividade, sucesso e felicidade são coisas diferentes, não necessariamente melhores ou piores, quando comparadas. São apenas diferentes e os problemas surgem quando são confundidas ou emparelhadas como se andassem sempre de mão dada. Podemos ser produtivos e não sermos felizes. E vice versa. Nem sempre, nem nunca. E como aprendemos em psicologia: cada caso é um caso.
Não me interpretem mal, há prazos que têm de ser cumpridos e há muita utilidade neles, são orientadores, estruturantes e ajudam a manter o funcionamento das coisas, sobretudo ao nível profissional e académico. Prazos podem ser boas formas de nos motivarmos a fazer determinada coisa, ou não. Em alguns momentos, com total falta de flexibilidade e relativização, podem tornar-se apenas em stressores e fontes de pressão desmesuradas que acabam por ter o efeito contrário ao desejado, em vez de nos fazerem andar, congelam-nos, mesmo perante o tão assustador e rápido cão.
Parar pode ser morrer, mas não parar pode ser morte certa também. Pode ser uma morte cumulativa em que perdemos a nossa energia, o nosso foco, alegria e realização. Quando damos conta continuamos a correr, de tarefa em tarefa, quase a sermos abocanhados pelo cão que nos persegue, mas sem objetivo em mente. Corremos automaticamente, sem destino definido. Cansados, frustrados ou até totalmente apáticos, a deixar-nos levar pela maré.
Por vezes sinto que quando nascemos já vimos com um pequeno calendário anexado com os timings esperados para concretizarmos determinadas coisas, marcos ou até, aos olhos de muitos, requisitos obrigatórios à existência humana, que todos devem querer atingir para terem o tal sucesso, felicidade ou propósito.
Assim que nascemos somos logo comparados em percentis no que toca ao nosso desenvolvimento e se não estamos a falar, andar ou a dar gargalhadas nos tempos que são considerados normais já parecemos estar cheios de problemas, o que nem sempre é a realidade. Somos todos seres diferentes, ainda que com muitas coisas em comum, mas com ritmos, mais ou menos, individuais e idiossincráticos, que devem ser respeitados.
Existem também os timings no que respeita à nossa educação, pela idade X temos de estar no ano Y. Depois, para cumprir estes timings inventados à pressão, temos de ir logo para um curso, mesmo que não saibamos o que queremos para o nosso futuro. Afinal, é preciso cumprir o calendário, não é? Depois também temos um limite de anos para terminarmos o curso em "bom". Estas fases mais ou menos delimitadas prolongam-se, ter um emprego estável, depois uma casa, pelo caminho uma relação que se assemelhe ao emprego. Só assim podem começar as questões sobre quando vai ser o casamento ou quando existirá um primeiro filho. Isto sucede-se ao longo da vida, sem que nos apercebamos disso. A partir de certa idade já não faz sentido pedir o divórcio, viajar, mudar de profissão, investir num sonho diferente.
Tudo o que foge disto parece demasiado estranho e fora da caixa. Atenção! Não há nada de errado em querer tudo o que mencionei em cima, mas também não há nada de errado em só querer algumas delas ou em não querer nenhuma. Não existe nenhuma anomalia se os passos não seguirem a ordem que, desde cedo, nos incutem que é a "certa". Não há nada de errado se o teu plano for diferente ou se precisares de mais tempo do que aqueles que te rodeiam para concretizar uma dessas fases. Errado é continuar a viver ao ritmo dos outros em aspetos que a ninguém, além de nós mesmos, diz respeito.
A comparação com os outros acaba por fomentar tudo isto e se vemos a pessoa do lado a ir mais rápido que nós, seja no que for, sentimo-nos desajustados, atrasados, em falta, insuficientes. Este tipo de pensamentos e sentimentos podem ser muito nocivos quando estamos a dar o nosso melhor e a dar tudo de nós.
O que faz sentido para os outros pode não fazer para nós, pode não ser o nosso sonho, aspiração e pode não nos trazer absolutamente nenhuma satisfação. Pelo menos não no tempo em que nos encontramos. Eles não estão errados, nem nós. Mudar de ideias ou de planos também é totalmente válido. Ao longo da vida, vamos sendo colocados em várias caixas, são poucas as que nos servem e que não nos limitam. Não precisamos de nos encaixar neste calendário que a sociedade imaginou, nem no calendário que os outros nos forçam a seguir. Não precisamos de andar sempre a correr com medo do terrível cão quando ele não existe ou quando ele apenas precisa que abrandemos, que tomemos consciência que estamos a sentir ansiedade ou que estamos em dificuldade.
O facto de o teu ritmo não ser o mesmo dos outros não é sinónimo de fracasso.
Maria João.
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